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Movimento empreenda: três mulheres mudam o cenário das vinícolas no sul do país

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Hortência Ayub, no centro, com as filhas Manuela (à esquerda) e Vanessa (à direita). Elas comandam o vinhedo (Foto: Manoel Marques)

O figurino é típico do homem rural do Rio Grande do Sul. Botas de couro, bombachas, camiseta
de manga comprida. Por baixo do chapéu, no entanto, escorrem longos fios loiros, que descem pelos ombros e emolduram o rosto de Hortência Ravache Brandão Ayub, 60 anos. Batom rosa e trajes rústicos, ela inspeciona com cuidado os 15 hectares do vinhedo que destoa da paisagem de pastos e arrozais do pampa gaúcho. A presença de Hortência e suas uvas ali é quase um atrevimento. Em um ambiente dominado por homens, ela ousou ser fazendeira. No país da cachaça e da cerveja, acreditou que poderia produzir vinhos de alta qualidade. No lugar das culturas agrícolas tradicionais, como a soja, plantou, há dez anos, mudas de vieiras trazidas da França e da Itália. Hortência acreditava que o solo arenoso e o clima da região da Campanha – muito frio no inverno e quente e seco no verão– produziriam frutos bons o bastante para serem convertidos em uma bebida fina. Ela tinha boas razões para tentar. Há algum tempo, havia deixado de trabalhar com arquitetura e decoração, sua área de formação. E sonhava em trazer as duas filhas, uma advogada (que passou parte da carreira em Porto Alegre) e uma arquiteta (que à época morava em Portugal) mais perto de si, em Itaqui, na fronteira com a Argentina. “Eu precisava encontrar uma atividade que envolvesse mais as mulheres. E a uva tem essa característica feminina, exige toda uma delicadeza no manejo”, afirma Hortência.

As uvas Merlot são matéria prima para os vinhos (Foto: Manoel Marques)

A ideia deu certo. Ao lado das filhas Manuela, 33, e Vanessa, 36, ela comanda a produção de cerca de 30 mil litros anuais de vinhos e espumantes finos, feitos a partir de 11 variedades de uvas, colhidas manualmente e, de preferência, por mulheres. “Elas são muito mais cuidadosas ao recolher os cachos, sabem quais selecionar ou descartar”, afirma Hortência. “O vinhedo é responsável por 70% da qualidade do vinho. Por isso, pelo menos metade dos nossos funcionários são mulheres”, diz.

 É Vanessa quem se responsabiliza por fazer os contratos de trabalho. Para garantir um bom produto, antes da colheita, as uvas são submetidas a testes que determinam a acidez e o teor de açúcar da fruta. Este é o traba­lho de Daniela Basílio, 27. Ela e o marido podam as videiras e comandam a colheita. “Gosto muito mais de ir para o vinhedo do que de ficar em casa fazendo tarefas domésticas”, afirma Daniela. Ela, que completou apenas o ensino fundamental, fez cursos para aprender a trabalhar com uvas e afirma que o empre­go ajuda a manter a igualdade entre o casal. “Vamos os dois para a lavoura de manhã e depois meu marido me ajuda a limpar a casa, a lavar a louça, a roupa.”

Hortência e suas filhas comandam a produção de cerca de 30 mil litros anuais de vinhos e espumantes finos (Foto: Manoel Marques)

Depois que saem do vinhedo, as uvas vão direto para a vinícola Campos de Cima, projetada por Manuela, a caçula de Hortência. “Fiquei anos estudando para fazer o projeto, visitei bodegas na Europa até chegarmos a esse modelo de construção”, diz. A vinícola está quase pronta. É equipada com máquinas italianas de processamento da uva, tanques de inox e barris de carvalho, que garantem a fermentação mais adequada para cada tipo da bebida. Capricho­sa, Manuela escolheu o arenito rosa, pedra típica das redondezas de Itaqui, para revestir as paredes da vinícola. Para manter o estilo sem se preocupar com o barro da colheita, ela gosta de usar melissas, fáceis de limpar. Diante de lamaçais, apela para as galochas, que sempre mantém no carro. “Depois de estudar em Barcelona e morar em Lisboa, eu não achava que voltaria a viver em Itaqui. Mas a crise na Europa e a possibilidade de ganhar dinheiro com o vinho no Brasil me convenceram”, diz a arquiteta, que trouxe consigo a filha e o marido português.

Hortência em frente à sede da fazenda  (Foto: Manoel Marques)

Os produtos da Campos de Cima foram premiados em concurso mundial, em Bruxelas, na Bélgica. E seus preços são altamente competitivos, graças ao controle total da produção e à venda direta ao consumidor, feita pela internet. A garrafa mais barata da vinícola, uma composição de Merlot, Cabernet Sauvignon e Tannat, custa R$ 12. Já o espumante de Chardonnay e Pinot Noir, considerado o terceiro melhor espumante brasileiro na Expovinis 2012, maior evento do setor nas Américas, sai por R$ 35. Ainda assim, há resistências no mercado interno. “O brasileiro ainda tem muito preconceito com o vinho nacional. Prefere pagar mais caro pela bebida chilena de pior qualidade do que comprar um excelente nacional. É cultural”, diz Hortência.

Nuno Duarte, enólogo português contratado em 2013 (Foto: Manoel Marques)

Poucas mulheres conseguem a façanha de se tornar empresárias do agronegócio, como fizeram Hortência e suas filhas, Manuela e Vanessa. Uma pesquisa recém-divulgada pelo Sebrae, a Agência de Apoio ao Empreendedor e Pequeno Empresário, mostrou que o empreendedorismo feminino tem crescido em todo o Brasil e em todos os setores da economia.

 

A agricultura, no entanto, é o setor mais fechado para elas. “Atualmente, as mulheres ainda têm uma participação mais forte no comércio e em serviços. E começam a aparecer também na indústria”, afirma Luiz Barreto, presidente do Sebrae. “O avanço no agronegócio, um reduto masculino, também é percebido, porém, de forma bem mais modesta. Em 2001,9% das mulheres donas de negócios estavam no agronegócio. Em 2011, essa participação cresceu para 11%”, diz Barreto. Hortência sentiu na pele as dificuldades de ser chefe no campo. “No começo não foi nada fácil. Eu dava uma ordem e os homens ficavam olhando para mim, não se moviam, quase como se não acreditassem que eu ia dizer a eles como trabalhar”, conta rindo. “Hoje, essas barreiras já diminuíram muito.”

Manuela, a filha caçula de Hortência, degusta um vinho (Foto: Manoel Marques)

Quando resolveu plantar uvas em meio aos tradicionais campos de arroz do pampa gaucho, houve quem duvidasse da aposta de Hortência. Achavam que ela perderia os R$ 2,5 milhões investidos no vinhedo e na vinícola. O tempo transformou os críticos em aliados e em concorrentes. Quando Hortência começou a empreitada, havia apenas duas vinícolas em toda a região da fronteira gaúcha com o Uruguai e a Argentina. Hoje, são 16. De acordo com o Instituto Brasileiro do Vinho, há 1,3 mil hectares plantados com videiras em nove municípios da Campanha, envolvendo pelo menos 150 produtores. A região já é responsável por 15% da produção brasileira de vinhos finos.

O brinde é feito com espumante produzido por elas (Foto: Manoel Marques)

Parte desse total vem da fazenda de Hortência, que chega a trabalhar até 12 horas por dia à frente do negócio. Nem os apelos do neto Mathias, de 5 anos, que insiste em se pendurar no pescoço da avó todas as manhãs e implorar para que ela não saía, a impedem de cumprir sua jornada. Além de administrar,Hortência não se importa em ajudar na colheita e até mesmo de colocar o rótulo nas garrafas que produz. Hoje, o vinhedo já se sustenta. “Proporcionalmente, é o setor com maior potencial lucrativo de toda fazenda”, afirma Hortência. “Nos próximos anos, tenho certeza de que iremos recuperar todo o investimento e elevar o vinho brasileiro a um patamar de qualidade diferente de tudo o que já foi feito no País.”


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