Desesperado para amenizar a sensação de que o rosto estava em chamas, ele foi até a rua, debatendo-se para conseguir pegar um pouco de neve e espalhá-la pela pele. Alguém precisava ajudá-lo, mas quem? A visão estava turva, os carros passavam em alta velocidade e já era tarde da noite. Sergei Yurevichcena Filin, diretor artístico do Teatro Bolshoi, o templo de balé clássico mais famoso do mundo, saiu um pouco de sua rotina em 17 de janeiro deste ano. Em vez de, como de costume, assistir ao espetáculo no Bolshoi – O Lago dos cisnes estava em cartaz – ele foi a um evento no Moscow Art Theatre. Saiu por volta das 23hs e seguiu em seu Mercedes SUV preto para o apartamento onde vive coma mulher e os três filhos, na rua Troitskaya, em Moscou. Ao deixar o estacionamento, que fica próximo ao edifício, a cena de terror aconteceu. Alguém chegou por trás de Filin e gritou seu nome. Depois, chamou-o de novo: “ei, você!”. Ao virar-se, Filin viu um homem de chapéu e cachecol. Embora tenha sido muito rápido, percebeu que ele carregava algo e teve certeza que era uma arma. Até que viu uma jarra de vidro na mão do rapaz e, de dentro dela, um líquido vindo em direção a seu rosto. A agonia começou. Era ácido sulfúrico, substância que, dependendo da concentração, corrói os tecidos da pele instantaneamente, como aconteceu ao diretor do Bolshoi.
O ataque a Filin tornou-se um escândalo mundial. Foi, afinal, uma história digna de Fiodor Dostoievski – o mais famoso dos escritores russos, que costumava escrever no século 19 sobre comportamentos patológicos, grandes tragédias humanas e dramas da sociedade. Fazia semanas, Filin estava recebendo ameaças por telefone, por e-mail e pelo Facebook. Mesmo assim, o diretor decidiu que não contrataria um segurança para acompanhá-lo no dia a dia.No último dia 6 de março, o bailarino do Bolshoi Pavel Dmitrochenko confessou que havia sido o mandante do crime. Pálido, com olheiras e muito magro negou, no entanto, que tenha encomendado o ataque nos moldes como aconteceu, com ácido sulfúrico. Disse que queria apenas dar um susto no diretor. Ironicamente, Dmitrochenko ganhou notoriedade protagonizando famosos vilões de clássicos como "O Lago dos Cisnes" e "Ivan, O Terrível". O que o teria levado a tamanha insanidade? Possivelmente, o amor por uma mulher que se tornou desafeto de Filin.
Anzhelina Vorontsova tinha 16 anos em 2008, quando sua destreza chamou a atenção de Filin, na época diretor da segunda principal companhia de dança de Moscou, o Balé Stanislavsky e Nemirovich- Danchenko. Ele ficou tão encantado que trouxe a moça e a mãe dela do interior para morarem em Moscou. Inscreveu Anzhelina numa conceituada academia de dança e conseguiu um emprego para a mãe. No ano seguinte, no entanto, Anzhelina decidiu ir para o Bolshoi em vez de entrar para o Balé Stanislavsky. Dizem que a relação dos dois nunca mais foi a mesma, ainda que Filin tenha se tornado diretor do Bolshoi em 2011. Até 17 de janeiro deste ano, a pergunta que não queria calar era se essa seria a razão de Anzhelina, hoje com21 anos, não conseguir os papéis principais. Depois do atentado contra Filin, a pergunta que passou a ser feita foi se Dmitrochenko, mandante do crime, queria vingar Anzhelina, sua namorada havia um ano e meio.
Desde dezembro do ano passado, a relação entre Dmitrochenko e o diretor artístico do Bolshoi andava tensa. O bailarino passou a insistir com Filin para dançar o papel principal na ópera "La Bayadére" e para que Anzhelina ficasse como duplo papel principal de "O Lago dos Cisnes" – Odette e Odile, os cisnes do beme do mal. Ao ouvir uma negativa do diretor do Bolshoi, Dmitrochenko teria respondido: “Vou lhe dar um ano novo inesquecível”. A especialista em dança Valeria Uralskaya, editora da revista Ballet, disse ao The New York Times que é complicado afirmar o quanto o ranço de Filin à traição profissional de Anzhelina vinha influenciando no fato de ela não ser escolhida para os melhores papéis. Segundo Valeria, a bailarina teve lesões no joelho e ganhou de peso. “Ela não se encontra na melhor forma. Há bailarinas que são estrelas maiores. É difícil separar fatores emocionais e objetivos nessa história.”
BALÉ E POLÍTICA
Historicamente o balé era a arte da corte e dançar para um dos czares (os antigos imperadores russos) era sinal de grande prestígio. No século 17, por exemplo, a czarina criou uma escola de balé imperial no Palácio de Inverno e, automaticamente, os estudantes passaram a ser considerados da nobreza. Ainda hoje, um cargo alto no Bolshoi é garantia de circular no primeiro escalão do poder. Isso significa que a disputa por esses cargos são acirradas e os métodos para consegui-los, às vezes, bem pouco ortodoxos. Sergei Filin, por exemplo, tornou-se diretor artístico do Bolshoi em março de 2011, quando Gennady Yanin, o principal candidato à vaga, foi derrubado após mais de 80 fotos suas vazaremna internet. Todas tinham conteúdo sexual e em uma delas Yanin aparecia fazendo sexo oral em um homem.
No início do século 20, quando começou a era comunista, em 1917, os teatros para ópera e balé não eram prioridades para o governo. Lênin, um dos líderes da revolução, considerava o Bolshoi um desperdício de dinheiro. Para ele, não tinha sentido manter o teatro “enquanto faltam escolas nas vilas”. Lênin chegou a pedir a Anatoly Lunacharsky, ministro da cultura da época, que os teatros do país fossem destruídos. Lunacharsky notou, no entanto, que mesmo a Rússia estando assolada por uma guerra civil, o povo ficava feliz quando sentava nas cadeiras do Bolshoi. Assim, o teatro não só foi poupado como tornou-se o palco oficial do regime comunista. O governo interferia diretamente no conteúdo das óperas e o Bolshoi passou a ser usado até para congressos do Partido Comunista. Os principais bailarinos eram alvo de privilégios e também de humilhação por parte de funcionários do alto escalão do governo, incluindo o próprio Stálin, líder russo após a morte de Lênin.
Quando o comunismo caiu, em 1991, o governo contratou Anatoly Iksanov para o cargo de diretor administrativo do Bolshoi, função que exerce até hoje. Entre outras coisas, ele tinha a função de aumentar a arrecadação do teatro – algo que conseguiu em pouco tempo. Naquela época, a Rússia havia entrado na era dos milionários oligargas – gente que enriqueceu fácil ao comprar, por preço de banana, antigas estatais da época comunista. Essas pessoas passaram a colaborar de diferentes formas com o Bolshoi, entre elas pagando pequenas fortunas por um bom lugar na plateia.
PROSTITUIÇÃO
Recentemente, a ligação do teatro com os oligarcas resultou em outra bomba para o Bolshoi. Pouco depois do ataque a Sergei Filin, a ex-primeira bailarina da companhia Anastasia Volochkova declarou à imprensa que o Bolshoi “está virando um grande prostíbulo”. Segundo ela, os oligargas mais influentes chegam a decidir até quem vai dançar no teatro e, mais do que isso, obrigam as bailarinas a se prostituírem. “Cheguei a receber, repetidamente, várias propostas para me deitar com oligarcas”, afirmou Anastasia.“Na minha época, as garotas eram forçadas a acompanhá-los em banquetes e depois tinham de ir para a cama comeles.” Anatoly Iksanov, o diretor administrativo do Bolshoi, negou as acusações da bailarina. E é verdade que o estilo de vida estapafúrdio de Anastasia a coloca numa posição frágil quando vêm dela às críticas aos novos ricos russos. Enquanto dançava no Bolshoi, Anastasia fez inúmeros amigos oligarcas e tornou-se ela mesma um exemplo de extravagância. Para seu casamento, por exemplo, preparou três vestidos – um branco, outro rosa e um pistache – e os exibiu numa cerimônia televisionada.
A relação da ex-bailarina com o Bolshoi azedou em 2003, quando foi demitida sob a alegação de estar gorda.O caso virou um escândalo e foi parar na justiça. Anatoly Iksanov, o diretor administrativo, declarou à revista New Yorker que a vaidade da bailarina tornou-se insuportável, dando a entender que esse foi o real motivo de sua demissão. “A gota d’água foi quando ela me disse pouco antes de irmos para Paris que todos os melhores papéis das óperas do Bolshoi seriam dela. Quando eu reagi espantado, ela disse que era a sua vontade”. Iksanov foi ainda mais longe nas declarações: “Fazia tempo que não nos apresentávamos na Ópera de Paris. Mas só o que aparecia no letreiro da fachada era o nome dela, enquanto o nome do Bolshoi quase não se via”. Sobre o peso de Anastasia, foi irônico: “Uma água viva pode ser pequena e ainda assim brilhar. Mas quando se é daquele tamanho, fica meio estranho, não?”, disse, referindo-se à altura e ao jeito chamativo da bailarina.
Não se sabe se as acusações de Anastasia são verdadeiras ou não. De todas as declarações, uma ao menos é certa. Para ela, a situação do Bolshoi nada mais é do
que um reflexo da atmosfera de corrupção que se passa na Rússia. “É um espelho de tudo o que está acontecendo no nosso país, mas em miniatura”, declarou. A mais nova vítima do Bolshoi é Svetlana Lunkina, uma das principais bailarinas do teatro, que se exilou no Canadá devido às ameaças que vem recebendo nos últimos meses. Na dúvida, achou melhor fugir. Enquanto isso, Sergei Filin se recupera do ataque com ácido sulfúrico em uma clínica na Alemanha. Ele promete que vai voltar.