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Eu, leitora: "Minha filha foi trocada na maternidade"

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Da esq. para a dir, as duas famílias reunidas em maio de 2014: José Luiz, Maria, Danielle, Douglas, Francielle, Ana Maria, Mariana e Edimilson (Foto: Arquivo pessoal)

Na primeira vez em que segurei minha filha no colo, soube que não era minha. Dei à luz uma menina moreninha, que vi por 2 segundos logo após o parto, quando as enfermeiras colocaram seu rosto coladinho ao meu, antes de a levarem para o berçário. Ela passou a noite com outros bebês e eu com outras mães que tinham dado à luz naquele dia. Pedi à equipe de enfermagem para vê-la diversas vezes, mas fui ignorada. O ‘reencontro’ só aconteceu de manhã. E foi tudo menos isso. A bebê que me entregaram no momento da alta hospitalar era loira, completamente diferente da que eu tinha visto, ainda que de relance, no dia anterior.

‘Não é minha filha’, eu disse, já sentindo o choro subir pela garganta enquanto a enfermeira me entregava a criança. Ela nem se abalou. Insisti, em prantos, que não era meu bebê, e que, por favor, fizesse algo. Ela então tomou a neném nos braços e a levou de volta ao berçário. Voltou horas depois, acompanhada de uma colega, carregando a mesma recém-nascida. ‘Esta é sua filha, sim. Por acaso você não sabe com quem andou?’, disparou. Foi o primeiro insulto de muitos que ouvi naquela manhã. Meu marido, José Luiz, chegou nessa hora para conhecer a bebê e nos levar para casa. Ele entrou no quarto e encontrou essa cena, eu chorando e as enfermeiras me acusando de adúltera.

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“Saí do hospital com aquela criança nos braços e a certeza de ter outra filha perdida no mundo. Demos à pequena o nome de Danielle. Desde o primeiro minuto me liguei profundamente a ela, mesmo sabendo que não tinha sido gerada por mim."

Saí do hospital com aquela criança nos braços e a certeza de ter outra filha perdida no mundo. Demos à pequena o nome de Danielle. Desde o primeiro minuto me liguei profundamente a ela, mesmo sabendo que não tinha sido gerada por mim. Eu era responsável por aquela vidinha. Era, portanto, minha filha também. Mas, em nosso bairro, os vizinhos se revezavam para conhecer a filha loira de pais morenos – ela não dividia nenhum traço nem com o irmãozinho, Douglas, quatro anos mais velho. Tentavam adivinhar com qual vizinho ela se parecia mais e chamavam meu marido de corno.

Danielle era nossa filha e nada nos afastaria dela. Mas a existência da outra não me deixava em paz. Começamos a juntar dinheiro para fazer o teste de DNA que, 19 anos atrás, tinha um preço proibitivo. Não demorou muito, entrei em depressão. Levava meus filhos à escola, dava banho neles, preparava o jantar, mas, quando estava sozinha em casa, chorava o tempo inteiro. Ouvia os programas policiais no rádio e ficava desesperada com as histórias de pais que espancavam suas crianças. Pensava que minha filha poderia estar sendo maltratada e o sentimento de impotência me desesperava. No posto de saúde, implorava aos médicos que me ajudassem a fazer o teste genético, mas ninguém acreditava no que eu dizia. Por causa da depressão, me tratavam como louca.

Danielle no seu aniversário de 2 anos e posando em frente às cataratas do Iguaçu (Foto: Arquivo pessoal)

Quando finalmente conseguimos o dinheiro, seis anos já haviam se passado. Nosso fantasma foi confirmado pelo laboratório: nem eu nem José Luiz éramos pais biológicos de Danielle. O próprio químico confessou ter guardado o resultado por um mês enquanto juntava coragem para nos dar a notícia. O primeiro passo depois disso foi contatar o hospital, que foi obrigado a nos dar a lista de partos feitos naquela madrugada.

Sozinhos mais uma vez, saímos em busca daquelas pessoas. Meu marido pegava o carro aos domingos e ia até os endereços da lista enquanto eu ficava com as crianças em casa. Nos locais indicados, ele descobria que muitas famílias haviam se mudado e contava com os vizinhos para rastrear o paradeiro delas. Uma das pistas nos levou até Rondônia. Por telefone, a família ouviu nossa história e foi muito compreensiva. Combinamos de trocar fotos de nossos filhos pelo correio, mas, quando elas chegaram, vimos que ninguém se parecia com ninguém. Assim seguimos.

“Ouvia os programas policiais no rádio e ficava desesperada com as histórias de pais que espancavam suas crianças. Pensava que minha filha poderia estar sendo maltratada e o sentimento de impotência me desesperava."
 

Um ano inteiro já havia se passado e não conseguíamos encontrar uma última mãe da lista. Estávamos desestabilizados emocionalmente e cansados. Numa manhã de domingo, meu marido me disse: ‘Má, hoje é o último dia. Depois, não vou mais’. Foi o nosso dia de sorte. Nessa última saída, meu marido, José Luiz, descobriu que a rua onde tanto buscava aquela mulher havia mudado de nome. Ana Maria Lesovski Barbosa não morava mais lá, mas seu sogro sim.

Como de fato era nosso dia de sorte, esse senhor estava em casa e se dispôs a nos ajudar a encontrá-la. Deu o endereço do trabalho do filho, e lá foi José Luiz atrás do moço. Chegando lá, contou nossa história e, no final, estendeu a ele um retrato de Dani. Esse homem começou a chorar imediatamente. A menina que ele via na foto era muito parecida com sua filha mais nova, Mariana. Quando voltou para casa, José Luiz entrou pela porta aliviado: ‘Eu achei, eu achei, eu achei!’, dizia. Eu mal podia acreditar. Agora tínhamos um encontro marcado e poderíamos investigar o caso, desta vez com as esperanças recarregadas.

Ana Maria e a filha Francielle no aniversário de 1 ano (Foto: Arquivo pessoal)

Ana Maria, a última mãe da lista, chegou ao local marcado com o marido e as filhas, Francielle, de 6 anos e morena, e Mariana, de 3 e loira. A mais velha escolheu uma cadeira do meu lado e, logo que se sentou, apoiou a mão na minha perna. Perdi o fôlego quando baixei os olhos e vi seus dedinhos – eram idênticos aos do meu filho Douglas! Não restava a menor dúvida: ela era a minha filha e a busca tinha acabado. Aquele encontro, que eu planejava como uma conversa inicial entre adultos, acabou sendo muito mais do que isso. José Luiz sorria. Edimilson, o marido de Ana Maria, me olhava, pela primeira vez na sua vida, e chorava. Perguntei por quê e a resposta foi: ‘Porque você se parece muito com a minha filha’. Vi então que ele também já tinha certeza. Mas a mãe, Ana Maria, parecia não gostar nada daquilo. Ela evitava olhar em meus olhos e não me dirigia a palavra. Eu havia questionado sua maternidade e era compreensível que me odiasse por isso. Esse pareceu ser o sentimento dela pelos meses seguintes. Quando lhe pedíamos para fazer o exame de DNA, ela negava.

VEJA FOTOS DA FAMÍLIA QUE TEVE AS DUAS FILHAS TROCADAS NA MATERNIDADE

“Numa tarde, por volta das 17h, decidi que já era hora de dar um basta e tomei todos os antidepressivos que tinha em casa de uma só vez. Acordei numa cama de hospital, depois de ter ficado em coma e quase morrer."

Foi uma fase difícil. Eu havia encontrado minha filha, mas não podia chegar perto dela. Ficava passando de carro em frente à casa onde ela vivia com sua família na tentativa de vê-la, ainda que a distância. Ana Maria ficou furiosa quando descobriu e me acusou de tentar roubar a menina. Ela não acreditava quando eu dizia que não queria trocar as crianças. Desde a maternidade, eu estava decidida a nunca me separar da minha Danielle. Mas queria, precisava, saber como a outra estava. Um ano se passou e Ana continuava irredutível, com medo de perder a filha para mim. Eu, que já havia ficado deprimida antes, entrei na mais profunda das minhas crises. Numa tarde, por volta das 17h, decidi que já era hora de dar um basta e tomei todos os antidepressivos que tinha em casa de uma só vez.

Acordei numa cama de hospital, depois de ter ficado em coma e quase morrer. Me emociono quando lembro do que aconteceu em seguida. Eu estava em recuperação e passei a andar pelos corredores para me exercitar. Num dos passeios, dei de cara com o pai de Edimilson – aquele mesmo avô que nos levara até o novo endereço de Ana Maria. Perguntei o que fazia ali e ele disse que a pequena Mariana estava muito doente, com uma gripe forte, também internada naquele hospital. Quando foi a minha vez de falar, disse a verdade: tinha tentado me matar. Ele quis saber o motivo da minha atitude e, de novo, não menti. Consternado com a minha dor, ele me ajudou. Na semana seguinte, Ana Maria se dispôs a fazer o exame de DNA.

Desta vez, o químico não fez rodeios com o resultado. O teste confirmava a troca na maternidade e estávamos todos lá para ouvir a notícia: eu, José Luiz, Ana Maria e Edimilson. Francielle era nossa filha biológica e Danielle, a deles. Eu sentia alívio, mas olhava para Ana Maria e via tristeza em seu rosto. Por ela ser loira e o marido, moreno, ter uma filha morena era perfeitamente possível. Ao contrário de mim, Ana vivia com a certeza de criar a criança que seu ventre gerou. Até esse dia.

Danielle e Francielle em imagens de infância: jovens hoje são amigas e consideram ter duas mães (Foto: Arquivo pessoal)

Voltamos para casa e decidimos não procurá-los por um tempo. Eles tinham bastante informação para digerir. Aos poucos, Ana e Edimilson nos procuraram novamente e começaram a nos visitar. Em outros finais de semana, éramos nós que íamos até eles com nossos dois filhos. Dani e Franci tinham a mesma idade, 7 anos, e viraram amigas imediatamente, dava gosto vê-las brincar. Com a orientação de psicólogos, decidimos esperar mais um pouco para dar a notícia a elas, que continuavam sem saber de nada. Dani foi a primeira a saber. Ela teve acompanhamento psicológico desde o primeiro teste de DNA e acho que estava pronta quando soube que não tinha saído da minha barriga.

As duas já tinham quase 8 anos quando, num domingo de visita, Dani saiu do banho enrolada em sua toalha dizendo ‘vou contar’. Eu e Ana Maria conversávamos na sala e nem percebemos do que se tratava. Na época, eu e Ana Maria estávamos ficando amigas e criando uma ligação muito forte. As duas amiguinhas fecharam a porta do quarto e lá dentro Dani disse: ‘Você sabia que a sua mãe não é sua mãe, que a minha mãe não é minha mãe, e que a sua mãe é minha mãe e a minha mãe é sua mãe?’. Franci, obviamente sem entender nada, correu até a sala atrás de explicações. Era verdade, dissemos, e caímos todas no choro e numa troca atrapalhada e carinhosa de abraços.

Desde esse dia, tenho uma filha que mora comigo e outra que vem nos visitar com frequência. Nossas famílias são muito unidas e cada casa tem a mesma formação que sempre teve. Nós adotamos nossas filhas de criação formalmente – foi a única saída jurídica que encontramos para consertar o erro. Em 2012, o Tribunal de Justiça do Paraná condenou o hospital a uma indenização de R$ 100 mil, mas a instituição faliu e ainda não recebemos nenhuma parte do dinheiro. Franci e Dani vão fazer 19 anos em outubro. Elas estudam na mesma faculdade e se veem todos os dias. Dizem que são irmãs gêmeas e que têm dois pais e duas mães. Hoje, somos todos felizes assim.


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