“É preciso deixar a voz num volume baixo, audível, mas baixo.” É como se estivesse fazendo uma autorreferência ao próprio tom, suave e professoral, que a fonoaudióloga Denise Mallet, 62 anos, fala do seu trabalho. Há cinco anos, ela usa a poesia para ajudar travestis e transexuais a modularem a voz, assumindo uma maneira mais feminina ou masculina de falar sem prejudicar as cordas vocais.
O tratamento, único no país, é oferecido gratuitamente pelo Ambulatório para a Saúde Integral de Travestis e Transexuais de São Paulo, no Centro de Referência e Treinamento DST/Aids, onde Denise atua desde 2001. Foi naquele primeiro ano que a fonoaudióloga recebeu, encaminhado por um otorrinolaringologista, um paciente muito grave, com quatro nódulos nas cordas vocais. “Isso aconteceu pelo esforço para manter uma voz aguda”, lembra.
Denise resolveu então começar o tratamento pelo inverso, resgatando a voz natural, masculina, do paciente. Feito todo o processo, que evitou uma cirurgia, surgiu outro problema: aquela voz grave era incompatível com a personalidade assumida pelo paciente, transexual há vários anos.
Fã de poesia, a paulistana conta que encontrou nos versos um caminho para modular a voz do paciente de maneira que falasse de modo mais suave, menos estridente. “A poesia já tem um ritmo muito agradável e convida a pessoa a falar numa forma mais cadenciada. Era isso que eu buscava”, explica.
A estratégia usada pela fonoaudióloga remete aos primeiros anos de profissão, em meados da década de 80, quando tratava crianças recém-operadas de fissura labio-palatal e com distúrbios de articulação. Acostumadas a se expressar de forma anasalada, elas precisavam “aprender” a usar toda a nova estrutura do palato para que a voz passasse a sair pelo boca. “Comecei a usar as poesias infantis, as brincadeiras, para treinar as crianças de uma forma lúdica”, conta Denise.
Poesia no serviço e saúde
A experiência positiva com as crianças, ela afirma, deu o impulso para usar novamente a poesia oito anos depois, com o público adulto. “Poesia hoje em dia é dificil, é um pequeno grupo que se interessa. Mas trabalhar poesia no serviço de saúde, usei porque as próprias crianças aprovaram essa experiência.” Mas em vez de “reaprender” a falar, os travestis e transexuais atendidos por Denise precisam abandonar velhos hábitos.
“Elas sabem que têm uma voz grave, só que essa voz é completamente esquecida porque não faz mais parte da personalidade. Eu explico, entendem muito bem, mas ao ouvir a voz grave, se chocam. Muitas choram. São várias sessões de relaxamento até que possam emitir uma palavra, um som, uma vogal”, explica. Só após sentir que as pacientes já conseguem falar de maneira natural com ela –em meio a algumas desistências das que já não aceitam a antiga voz- é que a fonoaudióloga inicia a modulação por meio da poesia. “É a poesia que me dá a malemolência do falar feminino” diz a fonoaudióloga, que já atendeu mais de 300 pacientes desde que o ambulatório foi inaugurado.
Entre as preferências, estão versos de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. Poemas mais modernos ou críticos têm baixa aceitação, conta Denise. “São pessoas muito machucadas, hostilizadas pela sociedade e pelas próprias famílias e a voz expressa todas as emoções. Então, elas recebem a poesia como um momento de paz. Preferem poemas mais românticos, suaves.”
Com o tempo, as próprias pacientes tomam gosto pela leitura dos versos e compram os próprios livros. A carioca Cecília Meirelles, uma das preferidas da fono, também está entre os mais queridos. Numa fase mais avançada, Denise usa também a prosa, mas, neste caso, a opção é por assuntos da vez, como a Copa. Mas há ainda simulações para treinar a nova maneira de falar ao telefone e até pedidos pouco convencionais, por exemplo: “Como uso a minha voz numa situação de perda?”
Monteiro Lobato e Rudolf Stein
O gosto pela poesia vem desde a infância desta paulistana filha de pai francês e mãe italiana. Pelas mãos da mãe, leu toda a obra de Monteira Lobato e se encantou pelo poema “Meus 8 anos”, de Casimiro de Abreu (aquele dos versos “Oh, que saudades que tenho/ Da aurora da minha vida/ Da minha infância querida/ Que os anos não trazem mais”).
Após terminar os estudos no colégio Mackenzie, formou-se em fonoaudiologia na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e se especializou em saúde pública na USP. Neste meio tempo, tomou contato com a escola antroposófica do filósofo austríaco Rudolf Steiner (1861-1925) e a teosofia, doutrina que compreende o ser humano e suas relações com as esferas física, anímica e espiritual.
Denise conta que passou por diversos postos de saúde do estado até pedir transferência para o Centro de Referência e Treinamento DST/Aids. “Achei que deveria buscar algo mais difícil, que me desafiasse.” Com o alastramento da Aids no fim dos anos 90 e início dos anos 2000, começou tratando de pacientes com lipodistrofia, doença metabólica que provoca o emagrecimento do rosto dos pacientes –curados após sessões de ginástica facial.
Vaidosa, desde que se tornou a “fonoaudióloga dos transexuais”, diz ter aprendido muito com as pacientes. “São mulheres muito bonitas, que estão sempre arrumadas, se maquiam muito bem e usam um salto alto muito melhor do que eu”, observa, rindo. Perguntada sobre o que mais aprendeu além das dicas de moda e beleza, responde, sem pestanejar: “A coragem. São mulheres muito corajosas, que enfrentam tudo, a sociedade, a família, para serem quem são.”