“Mas isso por acaso é um trabalho?” Demorou um tempo para a mãe de Zanele Mashumi perceber o que sua filha tinha decidido fazer da vida. Sempre com ótimas notas na escola, essa pequena garota poderia ter escolhido ser advogada, médica ou tantas outras profissões de prestígio. Mas curadora de mostras? Até o ano passado, não existiam nem galerias de arte no Soweto, a enorme região-símbolo da luta anti-Apartheid, onde vive a família Mashumi. Mas Zanele não estava a fim de seguir um caminho tradicional. “Eu queria mesmo era oferecer aos artistas um espaço onde eles pudessem expor”, explica a jovem de cabelos tingidos de ruivo e enormes olhos escuros – ainda mais chamativos com a aplicação de muitas camadas de máscara de cílios. “E queria que fosse aqui no Soweto, porque as pessoas ainda não estão acostumadas a conviver com arte”, completa.
Com um diploma de belas-artes no bolso, ela convenceu um restaurador a pendurar algumas de suas telas em um pequeno espaço. Esse lugar viria a se tornar uma galeria, que se encontra na rua Vilakazi, a poucos passos de onde morava Nelson Mandela antes de ser preso na ilha Robben, em 1964. Foi nestas ruas que, em 1976, aconteceu o confronto chamado de “O massacre do Soweto”, uma passeata estudantil inicialmente pacífica. Mas os 10 mil adolescentes e jovens que participaram foram violentamente reprimidos pela polícia e quatro deles terminaram mortos, causando comoção no mundo inteiro. Hoje, o bairro tornou-se parada obrigatória dos turistas que visitam a cidade. E na frente da casa que pertenceu ao primeiro presidente negro do país – transformada em museu – foram instalados restaurantes, lojas e tendas de artistas que vendem obras na rua. É ali que Zanele se locomove com calma, sorri e explica aos visitantes a história de cada artista. Apaixonada pelo que faz, ela conta à Marie Claire seus encontros e descobertas. A ex-menina pobre, que era sustentada pela mãe secretária com muita dificuldade, hoje aproveita cada momento da nova vida de êxito profissional. Mais do que satisfeita, ela se sente plena. “Aquilo que conquistei, antes de tudo, devo a mim mesma.”
Desde o fim do Apartheid, regime racista que segregava negros e brancos em vigor até o início dos anos 90, o Soweto transformou-se completamente e deixou de lado o antigo ar de gueto. As ruas foram asfaltadas, há muitos espaços verdes e os antigos moradores dos barracões (muito parecidos com as favelas brasileiras) hoje vivem em casas feitas por eles próprios. Ali, têm surgido novos centros comerciais, onde os negros de classe média emergente se rendem ao frenesi consumista. Construções de alvenaria foram sobrepostas às barracas de conjugado para abrigar milhares de famílias que chegam cheias de esperança de encontrar trabalho.
SEGREGAÇÃO E FUTURO
Certamente muitas barreiras caíram. A geração born free, que não conheceu a opressão do Apartheid e hoje tem 20 e poucos anos, aproveita as oportunidades que seus pais não imaginavam existir no passado. São típicos jovens da geração Y, sempre em busca de construir uma identidade própria. Instruídos e ambiciosos, têm em mente uma série de projetos e toda a intenção de realizá-los. “Quando era pequeno, eu vendia balinhas de confete e economizava por meses para comprar um par de tênis”, conta Sifiso Dlamini, um designer de 25 anos cujo sorriso tímido revela um dente de ouro – em alta entre os fashionistas urbanos de lá. “Era um luxo ter sneakers.” Como a família era pobre, ele decidiu fabricar seus calçados sozinho. Sua mãe ensinou-lhe noções básicas de costura e, inspirado pelos tênis usados por seus ídolos de hip hop, ele passou a fazer os próprios. O hobby virou negócio e, em 2008, ele lançou uma linha feita à mão, a Eish Hade. Original e cheia de personalidade, ela é feita com tecidos e couro reciclados. Exigente e perfeccionista, Sifiso trabalha duro para levar à frente o projeto. “Passei muitas noites em claro, mas na vida nada se consegue sem esforço”, diz. “E sei que preciso me esforçar ainda mais.” As encomendas aumentaram. Ele ganhou espaço na imprensa local. E começa a sonhar. “Gostaria que algum star usasse minhas criações”, afirma, enquanto toma uma cerveja e aproveita os últimos raios de sol de uma tarde de primavera. Sifiso ainda mora com os pais e tudo o que ganha é reinvestido na empresa.
Se o jovem usa a “energia criativa” e o “espírito empreendedor” que dominam o Soweto hoje, ele lamenta, porém, a falta de “ajuda do governo” e o “acesso limitado aos financiamentos para novos empresários”. Mas ele não tem interesse pela política. “Nossos pais precisaram lutar para conseguir os nossos direitos, nós podemos nos permitir ter outros interesses”, explica, dando voz ao típico espírito da geração pós-Apartheid, concentrada em si mesma e muito mais interessada na música do que nas ideias revolucionárias – não por isso sem convicções. Atrás de uma indiferença parente, ou até mesmo arrogância, os born free sabem muito bem o que querem, o que apreciame o que rejeitam. Seja para fazer carreira, seja apenas para viver de forma tranquila, o primeiro lema desse grupo é realizar as próprias ambições. Com eles, o Soweto se emancipa, se diverte e rejuvenesce sem complexos. Pelas ruas, o que se vê são pessoas usando looks extravagantes, mais leve os novos ricos fazendo barulho ao volante de carros com altas cilindradas e os bares da moda se multiplicando. Após as privações sofridas pelas gerações anteriores, os jovens sul-africanos mostram sinais exteriores de riqueza como prova de que tiveram um lugar no novo país do arco-íris. O sucesso material é ostentado, reivindicado, mesmo que para ter as coisas da moda se tenha que pedir um empréstimo - quase o sinal consciente de uma necessidade para atrair a atenção.
Domingo na frente do restaurante Panyaza é quase um encontro fixo do fim de semana, pois lá acontece o desfile dos carros de altas cilindradas. No estacionamento, transformado em um pântano pela chuva, estão alinhados veículos caros de montadoras como Mercedes, BMW e Audi. Com vestido curto e decotado lilás, unhas pintadas, extensão no cabelo e um smartphone em mãos, Portia Lomo trabalha em um canal de televisão norte-americano. Com 26 anos, ganha em um mês mais do que seu pai conseguia em 12. “Daqui a cinco anos compro uma Range Rover e uma casa em Sandton”, diz, referindo-se ao carro caríssimo e ao bairro rico que fica ao norte de Joanesburgo. “Terei uma sacada com vista incrível, um jardim enorme, quartos para hóspedes e piscina”, diz, se permitindo sonhar. “Não é tudo aquilo que a gente quer ter?” Por ora, no entanto, Portia curte com a multidão o som da house music, segurando na mão uma tábua cheia de salsichas e bifes suculentos. Ela parece feliz pelo que aquele momento representa - o retorno às origens. “Nada é melhor do que um rolê pelo distrito”, diz, sob as gargalhadas do amigo que a chama de “coco seco”, termo usado para se referir à burguesia negra que hoje pode sonhar com a vida antes exclusiva aos brancos.