Rir da ignorância. Foi essa a ideia de Fábio Porchat ao escrever “Viral”, série do grupo de humor "Porta dos Fundos" cujo mote está no delicado tema do HIV. “Não queremos rir do doente, mas do preconceito”, explica. Ter o HIV como tema, diz o ator e roteirista, foi uma forma de se impor um desafio. “O humor tem que fazer rir, mas tem também que lançar luz sobre determinados assuntos”, afirma Porchat. Os três capítulos de “Viral” não contrariam a regra de sucesso do grupo. Até aqui, os vídeos somam mais de dois milhões de visualizações.
A ideia de Porchat tem conseguido seu objetivo: trazer o tema para a pauta de discussão nas redes porque, por mais que se acredite que todos sabem dos riscos, a realidade mostra o contrário. Quem prova isso é o Jovem Soropositivo, um publicitário paulistano de 30 anos que se identifica desta forma e mantém um blog com o mesmo nome. Ele foi diagnosticado com o vírus há quatro anos e, desde então, escreve sobre sua nova realidade. É com seu relato que pretende combater o maior vilão dos portadores do vírus: o preconceito. “Quando realmente compreendi que os maiores responsáveis pela disseminação da doença são as pessoas que não usam camisinha e não fazem o teste, entendi que não representava um risco”, conta. Na entrevista a seguir, ele fala sobre a doença, o sexo, os novos desafios e lembra: “Quem sabe que tem HIV pode viver tão bem quanto quem não tem o vírus. Basta se cuidar”, garante.
Marie Claire - O teste de HIV era algo rotineiro na sua vida? Você descobriu ser portador do vírus por acaso?
Jovem Soropositivo - Não, o teste de HIV nunca foi rotina para mim. Descobri por acaso, no primeiro check-up que fiz na minha vida, aos 26 anos. Saía de um plano de saúde familiar e comecei a pagar o meu. Então resolvi aproveitar e começar a cuidar da minha saúde. Visitei um clínico geral e pedi todos os exames. Curiosamente, o médico não prescreveu o teste de HIV. Disse que era desnecessário, porque, segundo ele, se eu tivesse o vírus, já teria algum sintoma. Fui eu quem insistiu para que ele o incluísse. Só fiz isso porque queria seguir o exemplo de minha namorada da época, que fazia check-up anualmente, sempre incluindo o teste do HIV.
MC - Em um texto do blog, você fala sobre o HIV interrogativo. Por que acha importante fazer o teste mesmo sem a suspeita da doença?
JS - A suspeita de ter contraído HIV geralmente é mal interpretada. Muitas pessoas ainda associam o HIV a homossexuais, usuários de drogas injetáveis e comportamento “promíscuo”, sem nem esclarecer exatamente o que isso quer dizer. Nada disso é verdade, pois já faz algum tempo que doença está distribuída entre homens e mulheres, jovens e idosos, homossexuais e heterossexuais. Só é possível afirmar que não tem HIV quem sempre transou com camisinha ou, se falhou em usá-la, fez o teste de HIV dois meses depois da possível exposição ao vírus. Qualquer pessoa que não se encaixa nestes dois perfis pode ter HIV. Ninguém precisa ter medo do teste. Claro, receber um diagnóstico positivo para o HIV não é fácil, mas é muito melhor do que não saber. Quem tem HIV e não sabe tem grandes chances de transmitir o vírus para outras pessoas e, se demorar a fazer o teste, pode danificar seriamente o sistema imunológico. Por outro lado, quem sabe que tem HIV pode viver tão bem quanto quem não tem o vírus. Basta se cuidar.
MC - Por que você não usava camisinha antes do diagnóstico?
JS - Até receber o diagnóstico positivo, sempre achei que não usar camisinha de vez em quando era completamente normal. Escutei e ainda escuto histórias de amigos e amigas que contam não usar camisinha todas as vezes que transam. Fazia o mesmo: usava camisinha em algumas relações, em outras não. Na maioria das vezes, isso acontecia simplesmente porque percebíamos, minha parceira e eu, que nenhum dos dois tinha comprado preservativo. Então, seguíamos para o sexo assim mesmo, sem se preocupar com muita coisa além da possibilidade de gravidez. Essa era uma preocupação comum: duas namoradas que tive disseram que não era preciso usar camisinha porque tomavam pílula.
MC – Ao saber que era portador do vírus, você culpava a outra pessoa pelo seu diagnóstico?
JS - Essa nunca foi uma preocupação que me atormentou tanto. Quando recebi o resultado positivo fiquei mais preocupado em ter transmitido o vírus para minha namorada. Isso permaneceu até o último exame prescrito pelo médico infectologista, que veio negativo.
MC - Quando saber quem passou o vírus para você deixou de ser uma questão importante?
JS - Acho que foi quando recebi o resultado de meu primeiro exame de CD4, a célula do sistema imunológico mais afetada pelo HIV. A contagem delas já estava baixa, em 255 células, enquanto uma pessoa saudável tem pelo menos 500. Nessa hora entendi que a questão mais importante para mim, naquele momento, era cuidar da minha saúde, antes de qualquer outra coisa.
MC – Depois do diagnóstico você voltou a namorar?
JS - Continuei namorando a mesma mulher com quem dividi o momento do meu diagnóstico por mais dois anos. Terminamos por razões que nada têm a ver com o HIV.
MC - Você conta que é soropositivo para suas parceiras?
JS - Contrariando a sugestão do meu médico, sempre pensei que era legal contar e que isso deveria ser feito antes de primeira relação sexual. Isso muda toda a rotina do relacionamento, até porque o sexo hoje é parte da construção da intimidade e não mais resultado dela. Se demoramos muito para ir para cama, surge a sensação de que há algo estranho. Algumas mulheres se afastaram de mim por causa disso. Contar logo de cara também não é possível. Então, contar antes da primeira relação sexual exige um equilíbrio muito calculado. É preciso pesar o momento certo, o local certo e a pessoa certa. Fiz isso e, ainda assim, quando contei, percebi que essa era uma notícia muito chocante e que a parceira sempre precisaria de algum tempo de “digestão”.
MC - Alguém já reagiu muito mal à notícia? Qual foi a reação mais marcante?
JS - Uma mulher com quem eu estava saindo precisou de uma semana de lágrimas e intensas emoções para me dizer: “Desculpe, não consigo!”. Passado um mês, ela me ligou de surpresa dizendo: “Vamos para a cama agora! Mas será essa a única vez que iremos transar.”. Ela me explicou que, para ela, seria impossível ter algo sério e duradouro comigo. Outra mulher precisou de apenas uma tarde. Depois da minha revelação, ela saiu para caminhar e já voltou com a decisão tomada: “Hora alguma pensei em não ficar com você. Ao contrário, pensei no que poderia fazer para que tudo desse certo.” Ainda que esta última reação tenha sido boa, percebi que ela continuava assustada e que não sabia o que poderia fazer diante da situação. Chegou a dizer que imaginava que a única saída fosse a abstinência sexual.
MC – Qual a principal dúvida das meninas com quem você faz sexo?
JS - O curioso é que, embora o tempo que cada uma precisou para digerir a notícia tenha sido diferente, as perguntas que elas dispararam logo depois que contei ter HIV foram incrivelmente idênticas. Perguntaram sobre meu estado de saúde, a origem da minha infecção, meu tratamento, os riscos de transmissão e o que elas deveriam fazer para que o sexo comigo fosse seguro. Por último, perguntaram sobre como deveriam fazer para ter filhos comigo. Como a maioria dos homens, eu, claro, quase desmaiei quando escutei isso! Filhos era a última coisa que passava pela minha cabeça. Nenhuma delas sabia que, para o sexo ser plenamente seguro, bastava usar camisinha. Tinham medo que, mesmo assim, elas fossem contaminadas de alguma maneira. Não tinham ideia daquilo que meu médico sempre insistiu comigo: um soropositivo que se cuida e tem a quantidade de vírus indetectável no sangue tem menos chance de transmitir HIV numa relação sem preservativo do que um soropositivo que não fez o teste e não se cuida. Adicionando a camisinha a equação, a chance de transmissão é a mesma de ser atingido por um cometa.
MC - Como nos vídeos do "Porta dos Fundos", você procurou antigas namoradas para alertar sobre a possibilidade de ter passado o vírus para elas? Como foi?
JS - Sim, procurei logo no segundo mês depois do meu diagnóstico. Ainda estava bastante abalado, mas entendi que o melhor era fazer isso logo. Todas reagiram bem, perguntaram como eu estava e foram muito carinhosas. Exceto uma, que aproveitou o contato para me chamar de cafajeste e me lembrar que eu não tinha sido legal com ela. Algumas retornaram, me informando que fizeram o teste e que ele veio negativo. Outras não disseram nada.
MC - No primeiro texto do blog, você disse que seu principal medo era o de morrer precocemente. E agora, qual seria ele?
JS - O meu maior desafio é restabelecer o meu sistema imunológico, ainda afetado por tanto tempo de exposição ao vírus sem tratamento. Se tivesse feito o diagnóstico antes, isso não teria acontecido. O que posso fazer é cuidar muito bem da saúde e tomar meus medicamentos. Encaro com lucidez este e qualquer outro desafio. Gosto de pensar no que é possível fazer para resolver o problema. Se há algo que pode ser feito, faço. Se não há, então também não há motivos para se preocupar.