Mathilde Krim foi uma das primeiras mulheres a entrar na luta contra a AIDS, assim que surgiram os primeiros casos, em 1981. Médica e pesquisadora, ela fundou uma das organizações privadas iniciais dedicadas à pesquisa da doença e, depois, a amfAR, uma das principais fundações sem fins lucrativos dedicada à causa atualmente.
Pouco antes da quarta edição do Inspiration Gala São Paulo, que aconteceu em São Paulo na sexta-feira (4) para promover as ações da amfAR, Dra. Krim conversou, por email, com Marie Claire. Com quase 90 anos de idade e muita coisa para contar sobre sua batalha incansável contra o vírus HIV, a médica falou sobre a atual situação da pesquisa pela cura e disse o que é necessário, no momento, para que o ritmo de propagação do contágio diminua até cessar.
Marie Claire: Você se envolveu nas pesquisas sobre AIDS logo que os primeiros casos foram reportados, em 1981. Por que decidiu se dedicar a isso?
Mathilde Krim: As pessoas - jovens homens homossexuais - estavam morrendo a nossa volta e nós não tínhamos ideia do porquê. Esses homens estavam muito assustados, como você pode imaginar, e não havia nada que podíamos fazer por eles. O governo não estava fazendo nada. Havia também uma grande histeria sobre a doença e uma reação feroz contra os gays, que já eram uma comunidade marginalizada. Não podia ficar de braços cruzados e, como uma pesquisadora com amigos nas comunidades médicas, científicas e políticas, eu estava na posição de fazer algo.
MC: O que mudou desde 1981 em termos de ciência?
MK: Naturalmente, levou algum tempo para que a comunidade pesquisadora identificasse que estávamos lidando com o HIV e desenvolvesse um teste para ele. Foi só em 1987 que o primeiro anti-retroviral, AZT, foi aprovado, e ele era apenas parcialmente eficaz. Com o tempo, outras drogas foram desenvolvidas, e então o grande avanço veio na metade dos anos 90, com a aprovação dos inibidores da protease. Em combinação com outras drogas, os inibidores da protease revolucionaram os tratamentos e inverteram drasticamente a taxa de mortalidade por AIDS. Estou orgulhosa em dizer que amfAR apoiou a pesquisa inicial da enzima protease, que eventualmente levou ao desenvolvimento dessas drogas. Na verdade, quatro dos seis principais medicamentos anti-HIV que estão em uso hoje vieram de pesquisas financiadas pela amfAR. Nós temos bom conhecimento sobre o vírus, de maneira que agora podemos falar seriamente sobre a possibilidade de uma cura.
MC: Você acha que as pessoas tomaram mais consciência sobre a doença?
MK: Há, certamente, uma maior conscientização do HIV/AIDS, mas há também muita dúvida. Diversas pessoas pensam que se você é HIV positivo, só tem que tomar alguns remédios e estará bem. Isso está bem longe da verdade. Você tem que tomar a medicação todos os dias pelo resto de sua vida. E essas são drogas poderosas, que podem trazer sérios efeitos colaterais. Com freqüência as pessoas desenvolvem resistência a uma ou mais drogas. É por isso que é tão importante que encontremos a cura. Uma coisa que tem se mantido mais ou menos constante desde o começo da epidemia é o estigma que ainda envolve o HIV e a AIDS, e a discriminação que muitas pessoas enfrentam.
MC: Como a amfAR começou? Quando e por que você decidiu fundar a associação?
MK: No início da epidemia, nada se sabia sobre como a doença era transmitida ou, é claro, como ela podia ser evitada ou tratada. Não se sabia se a AIDS estava restrita a um ou mais "grupos de risco" ou se todo mundo na população geral estava ou poderia estar em risco. Precisávamos desesperadamente de respostas. Em abril de 1983, junto com um grupo de médicos e cientistas, fundei a "AIDS Medical Foundation", que era a primeira organização privada preocupada em promover e apoiar a investigação da AIDS. Em 1985, AMF se juntou com um grupo da Califórnia que era liderado por Elizabeth Taylor e, juntos, fundamos a "American Foundation for AIDS Research" - amfAR. A nova organização logo se tornou a preeminente organização nacional sem fins lucrativos dedicada a mobilizar o publico em apoio às pesquisas laboratoriais e clínicas sobre a doença, à prevenção e ao desenvolvimento de políticas públicas racionais e compassivas relacionadas a ela.
MC: Quais são as maiores dificuldades enfrentadas hoje na pesquisa sobre a AIDS?
MK: Sempre precisamos de mais fundos, principalmente depois que os investimentos do governo dos Estados Unidos diminuiram significativamente nos últimos anos. Para vencer esta epidemia, realmente precisamos de uma vacina e uma cura. A pesquisa por uma vacina teve sucesso bem limitado até hoje. A amfAR está mais focada em uma cura. Cientificamente, o único grande obstáculo a ser superado são os grandes reservatórios de HIV que continuam no organismo mesmo quando uma pessoa está respondendo bem ao tratamento anti-retroviral. Essas reservas têm se provado extremamente difíceis de serem eliminadas.
MC: A comunicação sobre a doença ainda é um problema?
MK: Ainda existe muitos equívocos comuns tanto na América do Norte quanto na África sub-Saariana. E o problema é ainda mais complicado pelo fato de que HIV/AIDS tende a ser mais concentrado em comunidades que já são marginalizadas com frequência, como homens homossexuais e outros homens que têm relações sexuais com homens, transgêneros, usuários de drogas injetáveis e profissionais do sexo. E como mencionado antes, ainda há um tremendo estigma envolvendo o HIV que tem se provado muito difícil de se dissipar.
MC: Na sua opinião, o que todas as pessoas deveriam saber sobre a AIDS que faria a diferença?
MK: Em primeiro lugar, como o vírus é transmitido e como se proteger. Muitas pessoas jovens - especialmente homossexuais - estão se infectando, então é essencial educá-los. Em segundo lugar, todos deveriam saber seu estado sorológico e buscar tratamento imediato em caso de HIV positivo. Isso é pelo bem da própria saúde e também porque nós sabemos com certeza que se as pessoas tomarem seus medicamentos como indicado, estão muito menos propensas a transmitir o vírus a outras. As pessoas precisam saber que podemos ganhar essa luta. Fizemos muito progresso contra a AIDS e se continuarmos comprometidos, podemos vencer essa epidemia. Temos assistido a um ressurgimento do HIV em algumas áreas e sabemos que se tirarmos o pé do acelerador, a epidemia global da AIDS poderia continuar por décadas.
MC: Recentemente, tivemos um caso de um sobrevivente real de AIDS, chamado de "paciente de Berlim", através de um transplante de células-tronco. Você acha que estamos perto de finalmente virar o jogo contra o HIV? É possível ajudar todas as pessoas necessitadas?
MK: O caso do "paciente de Berlim" foi um ponto muito emocionante porque provou que a obtenção de uma cura é tecnicamente viável. Apesar de o procedimento que este paciente foi submetido não ser facilmente replicável em uma escala significativa, ele foi o primeiro curado por meio do transplante de célula-tronco. Em 2013, foi reportado que uma criança foi curada do HIV, desta vez por meio de um tratamento muito precoce com medicamentos anti-retrovirais. Nos últimos anos, organizações científicas, incluindo a amfAR, o "National Institutes of Health" e a "International AIDS Society", estabeleceram grupos de pesquisas colaborativas que estão agora trabalhando em um tratamento de cura. Ainda não temos uma cura para todos que precisam, mas é nisso que estamos trabalhando.
MC: Como podemos mudar a realidade de mais de 35 milhões de pessoas infectadas?
MK: Para começar, precisamos de levar o tratamento a todos que precisam. No momento, cerca de 40% das pessoas necessitadas de tratamento ainda não possuem esse acesso. E, como eu disse, o tratamento se provou efetivo na prevenção, então é duplamente importante. Nós abaixamos o número de novas infecções para um terceiro lugar na classificação geral desde 2001, mas as taxas de infecções ainda crescem em algumas áreas e continuam altas entre alguns grupos-chave como homens homossexuais, usuários de drogas injetáveis e profissionais do sexo. Então, temos que intensificar nossos esforços preventivos nesses grupos e fazer o melhor uso dos métodos preventivos ao nosso dispor, incluindo camisinhas, programas de trocas de seringas para pessoas que usam drogas injetáveis, circuncisão masculina médica voluntária, profilaxia pré-exposição onde for apropriado.
MC: O que é a "Countdown to a Cure for AIDS" (contagem regressiva para a cura da AIDS)? Pode nos dizer um pouco mais sobre isso?
MK: A "Countdown to a Cure for AIDS" da amfAR foi lançada no começo deste ano com o objetivo de desenvolver a base científica para uma cura amplamente aplicável em 2020. A contagem regressiva foi desenvolvida para intensificar o programa de pesquisa da amfAR focado em encontrar uma cura, com planos estratégicos de investir 100 milhões de dólares na pesquisa por uma cura nos próximos seis anos. Nunca existiu uma época tão otimista na pesquisa sobre HIV/AIDS. Os novos avanços dos últimos anos trouxeram a comunidade científica a uma nova compreensão dos desafios que precisam ser superados para chegar a uma cura. E há uma confiança crescente de que, com os investimentos certos, esses desafios podem ser superados. Esse momento, juntamente com a disponibilidade de novas e emergentes tecnologias, nos levam a acreditar que essa é a hora de investir em um esforço para encontrar a cura e finalmente trazer a epidemia global do HIV/AIDS a um fim.