A impressão é de que lá dentro está fazendo 60 graus e que todo aquele brilho uma hora vai derreter. Nos “barracões” da Cidade do Samba – um complexo de galpões próximos à zona portuária do Rio de Janeiro – o calor é inclemente. Ali, cada escola do grupo especial do carnaval carioca ocupa um prédio. Os funcionários trabalham quase ininterruptamente, como se a temperatura fosse um detalhe e viver cercado por carros alegóricos gigantescos, algo natural. Umas das poucas coisas que os fazem parar é a presença de Giovanna. A nova porta-bandeira da Vila Isabel, ao descer pelas escadas que levam ao térreo do barracão da escola, arranca elogios de todos: “Que linda”, “Que linda”.
Sorriso largo, sua marca registrada, e educada, como convém a uma porta-bandeira, ela agradece o elogio, um por um. Diferentemente de todos que estão na Sapucaí, a porta-bandeira e o mestre-sala não sambam propriamente – eles executam um bailado ao ritmo da música. São passos tão delicados que uma das mais importantes porta-bandeiras de todos os tempos, a lendária Vilma Nascimento (ex-Portela), costumava dizer que a “a dança do mestre-sala é como o volteio de um beija-flor em torno da rosa”. Além de ser perfeita nessa contradição entre equilibrar a leveza de um balé com a força do carnaval (o campeonato é decidido por décimos de diferença e qualquer nota menor que 10 pode comprometer a escola), uma porta-bandeira é carismática, elegante e corajosa – junto com o mestre-sala, vale por uma ala inteira. “Elas são consideradas as princesas da escola. Têm graça, delicadeza. Diferente das rainhas de bateria, que são figuras fortes, como as rainhas têm de ser”, diz o carnavalesco Cid Carvalho, da Vila Isabel.
O fascínio pelo carnaval e, em especial, pela jornada dessas mulheres até ocuparem o posto mais observado da avenida – elas têm contrato de trabalho e salário médio do cargo gira em torno de R$ 6 mil e, como em todos os mercados, recebem ofertas da concorrência – resultou no livro "Onze Mulheres Incríveis do Carnaval Carioca", do jornalista Aydano André Motta, lançado no fim do ano passado. “A seleção das porta-bandeiras foi feita a partir de pesquisas e conversas com especialistas que conheconhecem o assunto a fundo. Não é, sob nenhuma hipótese, uma lista que pretende escalar as melhores da história do carnaval”, avisa.
No livro, há nomes que são unânimes, como Neide (ex-Mangueira), Vilma (ex-Portela) e Selminha Sorriso, da Beija-Flor. Além dela, entre as onze mulheres, apenas outras três estão em atividade – e Marie Claire foi encontrá-las para fazer as fotos desta reportagem: Giovanna, na Vila Isabel, Marcela, na Salgueiro e Lucinha Nobre, na Mocidade Independente de Padre Miguel.
DIVA DA TRADIÇÃO
Com meia hora de atraso e uma simpatia desconcertante, ela cumprimenta a todos e explica que atrasou porque domingo é o único dia que tem para cozinhar para o filho e para o “namorido”, que hoje ocupa o cargo de vice-presidente da Portela. Impossível não desculpá-la. Selma Rocha, a Selminha, é mesmo uma rainha. Chegou a 2013 como a maior vencedora viva do Estandarte de Ouro (prêmio de melhor porta-bandeira do carnaval, do qual foi sete vezes ganhadora) e trata a todos com a maior deferência. Há 19 anos defendendo a Beija-Flor, ela preza pela tradição do cargo como nenhuma outra. Evita decote, transparência, saia curta e não deixa ninguém tocar na bandeira da escola, a não ser que tenha sido autorizado por ela – no dia das fotos, apenas Igor, o filho de 13 anos, tinha permissão.
Quando não está nos ensaios na quadra da escola, nem em casa, Selminha pode ser encontrada no Gabinete Militar do Governo do Estado do Rio de Janeiro, onde trabalha como advogada, e na escolinha de mestre-sala do projeto social Sonho do Beija-Flor, seu grande xodó. A porta-bandeira nasceu em 1969, em Parada de Lucas, bairro pobre da Zona Norte do Rio, que ficou conhecido pela guerra dos traficantes contra os rivais de Vigário Geral. Na infância, enquanto ela ia na ala das crianças da Unido de Lucas, Dona Jacira, sua mãe e uma admiradora do samba, dançava na ala das passistas. Na adolescência, Selminha integrou o time de passistas da Império Serrano, embora sonhasse mesmo em empunhar o mastro da bandeira e atravessar a avenida. Em 1989, veio a chance. Mal sabia envolver o mastro no braço mas, graças ao diretor de harmonia da Império Serrano, venceu a competição para o cargo. “Porta-bandeira tem que sorrir como essa aqui”, disse ele. Deu tão certo que, em 2013, ela e Claudinho, sua “alma gêmea do samba” se consolidaram como o mais antigo casal em atividade na mesma escola. Juntos, mestre e diva ajudaram a conquistar sete dos doze títulos da Beija-Flor.
XODÓ DA COMUNIDADE
Não, não e não. Foram três negativas até Giovanna aceitar carregar a bandeira da Mangueira. Não por desprezo, mas por puro respeito à verde e rosa. “Eu tinha medo porque a Mangueira tem uma torcida muito forte. A ligação das pessoas com a escola é como no futebol, como o Flamengo”, explica ela, hoje representante da Vila Isabel. Giovanna da Silva Justo nasceu no Morro da Mangueira, em 1977, numa família de cinco irmãos. Aos 9 anos, ingressou na ala mirim de mestre-sala e porta-bandeira. No início dos anos 90, seu pai, Orlandy da Silva Júnior, então vice-presidente da escola, sabendo do talento da filha, tentou colocá-la no posto máximo que uma mulher ocupa na avenida. Foi o primeiro não.
“Recusei porque o povo não iria me olhar como porta-bandeira. Ia me ver apenas como a filha do vice-presidente da escola.” Em 1994, com Seu Orlandy já morto, veio o segundo convite, feito por Ivo Meirelles, na época vice-presidente da Mangueira. Outro não. “Ainda não me sentia pronta.” Mas a escola não se deu por vencida e o próprio presidente da época, Roberto Firmino, insistiu. “Ele disse que me queria lá de qualquer jeito, como primeira ou segunda porta-bandeira. Não concordei em ser a primeira, mas aceitei o posto de segunda”, diz ela, rindo da própria resistência. Mesmo assim, foi convencida a fazer um teste para o posto principal. A verdade é que, na ocasião, Giovanna pensava estar dançando apenas para Firmino quando, na realidade, vários diretores – entre eles a coreógrafa Deborah Coker – a observavam escondidos. “Eu realmente não me sentia pronta e hoje sei que não estava mesmo, mas Deus é tão bom que me colocaram para dançar com o Marquinhos”, diz ela sobre o mestre-sala que a acompanha até hoje. Apesar da resistência inicial, Giovanna não podia ter feito mais bonito naMangueira. Defendeu a escola de 1995 a 2009, ano em que passou para a Viradouro. Mãe de três filhos, está casada com um homem trinta e quatro anos mais velho, que conheceu graças ao trabalho de cupido de Marquinhos, com quem ela entra na avenida pela Vila Isabel, este ano.
NOBRE E ABUSADA
No capítulo que dedica à Lucinha Nobre, 38 anos, em "Onze Mulheres Incríveis do Carnaval Carioca", o jornalista Aydano André Motta a chama carinhosamente de “ousada”. Mas ela é mais que isso. “Eu falei que ele podia me chamar de abusada” diz, às gargalhadas. Lucinha foi a primeira porta-bandeira “100% profissional”, que sempre recebeu por sua arte. “Muitas vezes, [ela] precisou enfrentar dirigentes pouco afeitos ao hábito de cumprir compromissos firmados em contratos”, diz André Motta no livro. Além da coragem de enfrentar os poderosos do samba, Lucinha tem um jeito pouco cerimonioso, o que contribuiu para a impressão de uma ousadia atípica entre as mulheres que carregam o estandarte da escola. Com o corpo enfeitado por algumas tatuagens e um jeito de falar despachado, que deixa escapar palavrões entre uma frase e outra, ela fez questão de posar para as fotos deste ensaio com o cabelo solto e rebelde. “Bem black”, em suas palavras. Lucinha não tem medo de dizer que gosta de brilhar.
Nascida na classe média, ela é filha de um engenheiro, que mais tarde tornou-se empresário, e de uma dona de casa, que durante sua adolescência, foi para a Alemanha trabalhar como cozinheira no hotel Sheraton. Assim, criada entre Brasil e Europa, acabou fluente em francês, inglês e alemão. Dos cinco aos dezessete anos, estudou balé clássico no Teatro Municipal do Rio e também numa escola particular, até que desistiu. “Era muito peito, perna, bunda e braço para uma bailarina clássica”, diz, rindo. Em paralelo à dança clássica, Lucinha sempre viveu a paixão pelo carnaval. Toda a família, inclusive o irmão, o compositor Dudu Nobre, sempre foi envolvida com o samba. Ela desfilou pela primeira vez em 1984, com nove anos, numa escola chamada Alegria da Passarela. Dois anos depois, estreou na ala mirim da Mocidade Independente de Padre Miguel e,em1989, assumiu o posto de segunda porta-bandeira da escola. Como primeira, defendeu a Mocidade de 1992 a 2001, a Unidos da Tijuca, de 2002 a 2009, e a Portela, de 2010 a 2012. Este ano, volta à Mocidade, escola que, em 1997, a transformou num dos assuntos do carnaval, ao atravessar a avenida fantasiada de bailarina, com pernas à mostra, sem a imensa saia que veste as portas-bandeiras. A ideia era atravessar a Sapucaí nas pontas dos pés, mas não conseguiu. Mesmo assim, ganhou 10 dos jurados. “Pode ter doído, mas virou história”, escreveu Aydano Motta.
RESISTÊNCIA E SUPERAÇÃO
Ela chegou tímida, de óculos escuros, short, camiseta branca e bolsa Louis Vuitton. Completou 30 anos, mas tem jeito de menina e corpo esculpido pelo samba e pelo trabalho de professora de ginástica na academia Bodytech, da Barra da Tijuca. Marcella Alves, que este ano volta a defender a Salgueiro, tornou-se porta-bandeira aos 8 anos, quando assumiu o posto na Lins Imperial, pequena escola da região do Méier, Zona Norte do Rio. Aos 14, foi a mais nova porta-bandeira do Grupo Especial, pela Caprichoso de Pilares. Assim como Lucinha Nobre, dividia-se entre o Carnaval e o balé clássico. A vida dupla durou até ouvir de uma professora que no balé seria mais uma e no Carnaval, a primeira. Dali para frente, a bailarina deu lugar à porta-bandeira. Entre 2001 e 2005, Marcella defendeu a Salgueiro e, de 2006 a 2009, ficou na Mocidade Independente de Padre Miguel. Então veio o convite que daria início ao seu período mais emocionante no samba: carregar o pavilhão da Estação Primeira de Mangueira. “Apesar de eu ser salgueirense, a Mangueira é a maior escola de samba do planeta.
Como dizer não? Ao mesmo tempo, eu não era da comunidade e temia como seria recebida”, diz. Marcella estava indo para a verde e rosa substituir Giovanna, adorada pela comunidade, e escutou todo tipo de rejeição.“Quem é essa patricinha da Barra?” [ela nasceu no bairro de Lins, mas hoje mora na Barra da Tijuca]. Os ânimos da comunidade voltariam a se exaltar no Carnaval de 2010, o primeiro dela na escola, quando as penas de faisão da saia da fantasia a impediram de se movimentar adequadamente. O resultado foi duas notas abaixo de dez, num total de quatro jurados, e a Mangueira em sexto lugar. Não adiantava explicar, o sentimento dos mangueirenses era imponderável. “De que adianta parecer a Barbie e não saber dançar?”, chegou a ouvir. Marcella deu a volta por cima e, junto com o mestre-sala Raphael, foi o único casal de 2011 a receber as quatro notas 10. Ela ainda defendeu a Mangueira até 2013, quando foi considerada a melhor da avenida e levou o "Estandarte de Ouro". Este ano, decidiu que era a vez da Salgueiro. “Precisava terminar minha história com a escola.” Terminar? “Todo ano digo que vou parar e não paro”, diz, com a voz completamente embargada. Casada há quatro anos, confessa o desejo de ser mãe, mas não quer que o filho sofra com ela a pressão e as angústias do posto. Por enquanto, o prazer de atravessar a avenida com o pavilhão na mão ainda fala mais alto.