No Brasil, a pandemia tem gerado impactos recordes. Entre os números avassaladores, estão os que calculam seu estrago econômico. As maiores vítimas dele, como mostram as pesquisas, são as mulheres. A mais recente versão da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios Contínua (Pnadc) mostrou que cerca de 7 milhões de mulheres abandonaram o mercado de trabalho já na primeira quinzena de março, quando foi iniciada a quarentena.
O número de homens na mesma situação de desemprego, considerando o mesmo período, é de aproximadamente 5 milhões. De acordo com o pesquisador Marcos Hecksher, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é a primeira vez nos últimos três anos que a maioria das mulheres está fora da força de trabalho (que considera quem está trabalhando ou procurando emprego). "Além das que perderam o emprego, muitas não conseguiram voltar a tentar a recolocação. E a estatística é formada majoritariamente por mulheres negras, de baixa renda”, afirma.
A boa notícia, no entanto, vem do futuro. Pesquisadores de tendências e profissionais da área de recursos humanos que conversaram com Marie Claire apontam pontos determinantes para a retomada de carreira ou maneiras de se reinventar. O melhor? Habilidades tradicionalmente atribuídas às mulheres tendem a ser mais valorizadas. A seguir, as tendências que devem ganhar corpo nos próximos meses.
ACT LOCAL THINK GLOBAL
“No ambiente corporativo principalmente, é fato que a pandemia veio acelerar movimentos que já estavam em curso”, afirma Ligia Zotini, pesquisadora de futuro e fundadora da consultoria Voicers. Para ela, o trabalho remoto e o maior equilíbrio entre vida profissional e pessoal são os exemplos mais óbvios desta constatação. “Desde 2012, com o advento da internet móvel, já se tornou possível trabalhar remotamente e ali começamos a ver novos empregos e negócios nascendo”. Ainda assim, muitas corporações se mostravam resistentes ao homeoffice. Porém, não apenas pelas exigências de isolamento, mas pela experiência vivida pelos funcionários, Ligia acredita que trabalhar de casa será uma realidade e um anseio para muitos, mesmo depois que a pandemia estiver controlada. “Toda uma força de trabalho descobriu que é possível manter performance e resultado, sem necessariamente cumprir horários fabris. O mundo deixou de seguir o relógio industrial e continuou rodando”.
Também para Andrea Cruz, CEO da SERH1 Consultoria, a busca por uma equação menos desigual no tempo dedicado ao trabalho e à vida pessoal já vinha acontecendo, capitaneada principalmente pelas novas gerações. “As pessoas passaram a procurar empresas que proporcionassem não apenas um trabalho, mas a possibilidade de contribuir para todo um ecossistema do qual elas fazem parte”, explica. “E, independente do gênero e área, já percebíamos questionamentos mais profundos sobre valores e propósito na hora de tomar as decisões de carreira”, diz Andrea.
Analisando habilidades profissionais, outra tendência pré-pandemia que se cristalizou no contexto atual e prevalecerá no futuro foi a relevância das chamadas soft skills, como empatia, resiliência e flexibilidade, sobretudo nas funções de liderança. Mais atribuídas a mulheres e às gestões femininas, essas capacidades somadas e um olhar mais humano passaram a ter o mesmo peso de capacidades técnicas antes mais valorizadas.
PROTAGONISMO INÉDITO
“Mulheres têm uma vantagem competitiva absurda, sem sombra de dúvidas, com tudo que está acontecendo”, acredita Andrea Cruz. A explicação, diz a socióloga Maria Arminda do Nascimento Arruda, diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenadora do Escritório USP Mulheres, está nas construções históricas de como a mulher se lança ao mercado de trabalho e na vida pública ainda nos primórdios. “Não fomos exatamente preparadas para trabalhar fora. Começamos a acumular funções nos pós guerras, quando o papel da mulher deixou de ser apenas de cuidadora do lar e dos filhos”, conta. “E aí, ela se lançou a esses desafios e não teve outra escolha que não se adaptar e dar conta”. De acordo com a socióloga, este é considerado o início de uma série de rupturas sociais e de comportamento, que culminam na formação da personalidade moderna. E, consequentemente, mais aberta a inovações, mudanças e reorganizações de vida – habilidades que se fazem obrigatórias no contexto atual, seja dentro de casa ou no trabalho.
Para esta possibilidade, talvez inédita, de se ampliar o protagonismo feminino, conta também a maior percepção da carga mental por parte de parceiros e de empregadores, o chamado trabalho invisível, que inclui afazeres domésticos e de atenção à família. No Brasil, as mulheres gastam quatro vezes mais tempo em tarefas domésticas e de cuidados com idosos, crianças e doentes do que os homens. O tema é, inclusive, alvo de campanha recém lançada pelo Escritório USP Mulheres alinhada às recomendações da ONU Mulheres na pandemia. Com as maiores instituições – família, educação e trabalho – acontecendo dentro de casa, a divisão de responsabilidades tende a ser mais igualitária, reduzindo a sobrecarga feminina.
PROFISSIONAL DO FUTURO
São cinco as características essenciais já exigidas no cenário atual, e mandatórias no futuro do trabalho.
1. Empatia;
2. Resiliência;
3. Adaptabilidade;
4. Desapego dos modelos passados;
5. A “cereja do bolo”, como aponta Andrea Cruz, consciência coletiva.
“Muitas coisas caem por terra a partir de agora. Precisamos insistir menos na perfeição e estar mais tolerantes aos erros para ter agilidade nas correções de rota”, afirma ela, que atua como consultora e coaching tanto para empresas, quanto para profissionais que buscam orientar a carreira de maneira autônoma. “É fundamental ainda estar aberto genuinamente ao novo, investir no aprendizado contínuo e aplicar suas experiências não apenas em prol do desenvolvimento individual ou da sua empresa, mas para um legado coletivo”.
Não é possível afirmar que carreiras podem desaparecer, mas alguns perfis profissionais perdem espaço. Diretora de recursos humanos da Alcon, multinacional de dispositivos médicos para saúde ocular, Tatiana Libbos acredita que para líderes que necessitem do controle extremo, com funcionários atuando o tempo todo presencialmente como nos moldes passados, não haverá mais lugar. O mesmo vale para quem tem dificuldade em atuar de forma mais colaborativa “O que vivemos nos últimos meses já modificou crenças e paradigmas de forma definitiva”, afirma a executiva.
Head do Linkedin no Brasil, Ana Claudia Plihal corrobora com a colocação de Tatiana. “Muitos gestores, anteriormente absolutamente descrentes da produtividade no modelo de trabalho remoto, se convenceram de que ele é viável e até conveniente em determinadas posições”, afirma ela. Esta também é uma mudança que pode ajudar algumas classes de mulheres a ingressar no mercado de trabalho, que agora têm maior chance de conciliar o horário de trabalho com o cuidado dos filhos.
UMA PUXA A OUTRA
Ganhar protagonismo traz uma responsabilidade adicional para aquelas que avançarem. “É necessário olhar para as mulheres que estão dando passos para trás, porque isso está acontecendo. E este compromisso com as outras é esperado principalmente daquelas que já estão na liderança”, alerta a professora Maria Arminda. Segundo Ana Claudia, é real a possibilidade de muito do progresso que foi alcançado nos últimos anos, quando observamos a carreira feminina, se perder tanto pelo impacto de longo prazo da pandemia, quanto pela diminuição da importância das ações de paridade de gênero nas empresas.
Para Andrea Cruz, cabe às corporações ter flexibilidade para gerar oportunidades. “Essas são palavras-chave que vão determinar o resultado lá na frente. Empresas precisarão rever modelos de trabalho e formas de contratação. Será que é preciso inglês fluente para toda posição, por exemplo?”, pondera. “A pergunta central será: o que pode ser flexibilizado para contribuir com a queda do desemprego, e consequentemente, um ecossistema mais equilibrado?"